RETORNAR ÀS NOTÍCIAS - “Pessoas são pessoas e políticos são políticos”. O outro lado da guerra, aos olhos de um russo


01-03-2022 16:21h Vários

 

 À medida que a guerra na Ucrânia continua a escalar, uma grande parte da população russa parece não concordar com as decisões tomadas pelo Presidente Vladimir Putin. Mas quem o contraria, também sofre sanções.

O ZAP entrevistou Dmitri, um cidadão russo que nos dá uma perspetiva diferente da guerra da Ucrânia — a de quem a vê do “outro lado” da frente de batalha.

Dmitri relata que, neste momento, na Rússia, uma pessoa vai presa por mais tempo se fizer um protesto contra o regime de Putin, do que se matar alguém.

“Se eu sair com um cartaz a dizer ‘não à guerra’, podem levar-me e mandar-me para a prisão durante vários anos”. Dmitri admite que não tem palavras para explicar o que está a acontecer.

 

O parlamento russo está hoje a discutir uma lei, segundo a qual a falsa informação sobre as ações do exército russo na Ucrânia significará até 15 anos de prisão. E tudo indica, segundo Dmitri, que vai ser aceite.

As escolas em São Petersburgo receberam recomendações do Ministério da Educação e Ciência sobre como informar os alunos sobre os eventos na Ucrânia.

A redação está disposta em quatro diretrizes, dependendo da idade e da natureza da conversa. O foco é a agressão e as guerras de informação da NATO, segundo noticia o jornal russo Fontanka.

“Se eu fosse mais novo e não tivesse de cuidar da minha filha, ia para as ruas para me manifestar, mas tenho as minhas responsabilidades. Se eu for preso durante cinco anos, quem tomaria conta dela?”, desabafa.

Quando questionado pelo ZAP sobre como é que os media russos relatavam a guerra, o cidadão explicou que não seguia os órgãos de comunicação do seu país “há pelo menos três ou quatro anos (…), porque eliminaram todos os meios de comunicação independentes”.

“Existe apenas uma estação de rádio em todo o país, chamada Echo of Moscow. Eles não são oposição, mas deixam falar qualquer tipo de pessoas“, conta.

“Do governo, contra o governo, oposição, não oposição, o que quer que seja. Podemos ouvir as pessoas a falar nessa rádio e ficar com uma ideia do que se passa. Eles não nos impõem tudo”, sublinha Dmitri.

 

Existe também outro órgão de comunicação online, o jornal Meduza, escrito em russo, mas sediado na Letónia: “portanto, são bastante independentes”.

Dmitri conta que, neste momento, segue a estação de rádio Echo of Moscow, o jornal Meduza, e um canal de Telegram ucraniano.

“Quando está uma guerra em curso, há propaganda do nosso lado, e propaganda do lado deles”, sublinha. Por isso, tenta consumir informação proveniente dos dois lados, para melhor ficar com uma ideia do que realmente está acontecer.

Na Rússia, os órgão de comunicação relatam “que os ucranianos são nazis e criminosos, e que a única parte certa é a Rússia, e que Putin só se está a proteger de problemas futuros. É o que eles dizem”, sublinha.

“Há uns dias, proibiram os meios de comunicação de citar outras fontes de informação para além do Estado. Assim, se publicarem alguma coisa, terá de referir apenas as fontes de informação do Estado, nenhuma outra”.

Embora Dmitri se mantenha atualizado relativamente ao que se passa fora da propaganda de Putin, não acontece o mesmo em todas as gerações.

“Todos nós temos problemas com os nossos pais, porque os nossos pais vêm televisão todos os dias, e a propaganda bombeia o cérebro deles com o ponto de vista do Kremlin”, explica.

“Portanto, tudo o que fazemos, nunca falamos de política com os nossos pais, porque eles estão ‘zombificados’. Não estou a brincar”, relata.

 

Dmitri conta que apenas conversa com os pais sobre o tempo, viagens, e “coisas inocentes”, mas “de forma alguma” puxam o assunto da política.

É como uma infeção, que lhes metem no cérebro, como um zombie. Eles não têm noção daquilo que dizem”.

Dmitri procura por informação sobre a guerra “em todo o lado”. Mas alerta para se ter em mente que “mesmo os meios de comunicação ocidentais são controlados por alguém”.

“Os romanos antigos costumavam dizer que a verdade está no meio. Assim, com a minha mente clara, apenas tento apanhar aqui e ali um pouco de informação, depois junto-a e tento compreender o que se está a passar. Mas não confio cegamente em nenhuma das fontes, porque todas as fontes são controladas por alguém”, nota.

“A Ucrânia é um país muito diferente”

Segundo Dmitri, “infelizmente”, por detrás da guerra entre os países vizinhos, há “grandes interesses políticos e internacionais“. “Na verdade, é uma guerra da Rússia contra a América, onde usam a Ucrânia”.

Mas têm de nos culpar. Foi o nosso país que atacou a Ucrânia“, salienta o russo. “Os nossos soldados estão a matar ucranianos, e os nossos soldados também estão a morrer. Vejo canais de televisão ucranianos, e consigo ver jovens russos a morrer ali. E para quê?”

Dmitri realça que a “Ucrânia é um país muito diferente. Há o este e há o oeste. E se olharmos para um mapa, metade da Ucrânia está na Europa, e metade da Ucrânia está no meio da Rússia”.

“E estas duas áreas são tão diferentes, com histórias diferentes, e mentalidades diferentes. Eles têm tido problemas internos desde sempre“, acrescenta.

 

Dmitri recorda-se de quando festejou um aniversário, em 2010 ou 2011, e convidou dois casais ucranianos. Um era da Ucrânia oriental e o outro da Ucrânia ocidental.

“Tivemos de os colocar em dois lados da mesa, pois de outra forma teriam lutado um contra o outro”. Na manhã seguinte, telefonou a um dos ucranianos, para saber “como se estava a sentir, sendo que tínhamos bebido muito antes, e talvez estivesse com dores de cabeça”.

Ao que o amigo respondeu “as minhas pernas é que estão a doer”. Quando lhe perguntou o porquê, ele explicou: “porque a minha mulher continuava a dar-me pontapés debaixo da mesa para manter a calma com os ucranianos ocidentais“.

De acordo com Dmitri, há um conflito interno na Ucrânia desde que se recorda. Em 2010 elegeram um presidente , que ganhou mais votos na zona oriental.

“Era um pró-russo. Era uma pessoa terrível, todos o odiavam, mas era um presidente eleito legalmente. A certa altura, correram com ele em Kiev. Portanto, foi uma revolução, e parece ter sido uma revolução organizada”, explica.

Assim, a Revolução Ucraniana de 2014, também conhecida como a Revolução da Dignidade, teve início em Kiev, a capital da Ucrânia, com violentas manifestações de protesto, conhecidas como Euromaidan, contra o governo do presidente eleito na altura, Viktor Yanukovych.

“Depois disso, deu-se este conflito entre o este e o oeste da Ucrânia, e ao mesmo tempo, havia o risco de a Ucrânia um dia aderir à NATO“, sublinha Dmitri.

“Assim, o presidente russo e a sua administração decidiram iniciar este conflito, utilizar este conflito interno, isolando estes dois territórios porque, de acordo com as regras da NATO, não podem aceitar países onde há conflito a decorrer“, conta.

De acordo com o russo, este conflito é o “fundamento” da guerra, “o que não justifica, de forma alguma, o que se está a passar hoje em dia”.

Tanto quanto se sabe na Rússia, quando o Muro de Berlim foi eliminado, o acordo entre a NATO e os Estados Unidos de um lado, e a Rússia do outro, era que a NATO “não iria mais além da fronteira da Alemanha, porque já não havia Pacto de Varsóvia, não havia luta entre o comunismo e capitalismo, e assim por diante”.

“Mas apesar disso, os americanos colocaram bases da NATO na Estónia, na Letónia, na Lituânia, na Polónia, na República Checa, na Bulgária, na Roménia. Porquê? Ninguém sabe”, questiona Dmitri.

“O passo seguinte seria a Ucrânia”, destaca. “Portanto, esse foi o gatilho” para o início da guerra que decorre hoje.

“Recentemente, Putin e o seu gang tentaram negociar com a NATO e tentaram fazer um acordo para não se instalar na Ucrânia, para a Ucrânia permanecer neutra, mas não houve acordo com a NATO e com os americanos. E depois disso, Putin enlouqueceu e começou toda esta confusão. E é isto”, resume Dmitri.

Rússia pode estar a forçar soldados a combater

Quando questionado pelo ZAP sobre esta possibilidade, Dmitri nota que “todos nós recebemos informações de algum lado. Alguém nos dá informações, e nem sempre sabemos quem nos dá essas informações e porquê”.

Sempre ouviu dizer que a Rússia podia estar a forçar soldados a alistarem-se, mas não pode “nem confirmar nem desmentir“.

Na Rússia, existem contratos de exército para profissionais. Cada jovem pode escolher, tal como em Portugal, ir para o exército, assinar um contrato, e ser pago.

Mas existe uma pequena diferença. Todos os jovens a partir dos 18 anos são obrigados a ir para o exército durante um ano.

“Na união soviética, eram dois anos no terreno, e três anos na marinha. Agora é apenas um ano”, recorda Dmitri.

“E presume-se que este tipo de soldados, que não são profissionais, não devem ser enviados para qualquer tipo de guerra ou qualquer coisa do género”, acrescenta.

Mas o russo também ouviu dizer que, “hoje em dia, eles os fazem assinar contratos. Eles levam-nos, e obrigam-nos a assinar contratos. Mas ouvi-o algures e não posso nem confirmar nem dizer que é falso”.

A população russa não defende Putin

“Não posso falar em nome de todos os russos, porque somos cento e quarenta milhões de pessoas, e metade delas votou no Putin, mas eu não sei quem são estas pessoas” que o fizeram, conta Dmitri.

“Tenho muitos amigos, tenho muitos conhecidos, mas não conheço sequer um deles que tenha votado no Putin nos últimos 20 anos”, destaca.

No caso da geração mais antiga, a geração dos pais de Dmitri, o caso já é diferente. É uma geração que nasceu e viveu na era soviética, “quando dificilmente se podia comprar queijo ou salsichas nas lojas. Não se podia viajar, não se podia fazer nada”.

“A vida deles hoje é muito melhor do que quando eram jovens. Eles preferem a estabilidade, mesmo este tipo de estabilidade, do que mais turbulência na sua vida. E foi por isso que votaram no Putin. Penso que não concordam totalmente com o que vêm, mas as suas vidas são muito melhores hoje em dia”, explica.

Já as gerações jovens viajaram pelo mundo, conheceram pessoas e sabem “como podia ser e como devia ser” a política. “Todos esperávamos que isso acontecesse na Rússia, mas infelizmente não aconteceu”.

Putin não é imortal e “o tempo elimina impérios”

Até há dois dias, Dmitri “não pensava que Putin fosse um idiota, ou louco, ou demente, ou algo assim”. Agora, não tem “assim tanta certeza”.

Durante os últimos anos, o Presidente russo “eliminou toda a oposição, eliminou todos os meios de comunicação social independentes”, e alterou a legislação de tal forma que, “se protestar, mesmo sozinho na rua com um cartaz”, pode ser preso.

Para além disso, Putin criou vários serviços. Inicialmente, havia apenas a polícia e o KGB, que agora é o FSB. “Depois criou outro, que é a Guarda Nacional da Rússia, que é independente tanto dos assuntos internos como da FSB”. Dmitri admite que são “demasiados serviços secretos, demasiadas pessoas com poder“.

O russo explica que nasceu e cresceu na união soviética, “que se pretendia que existisse para sempre, e que se pretendia vencer na luta contra o comunismo e o capitalismo, mas explodiu e já não existe. Assim, o tempo cura, e o tempo elimina impérios, civilizações, países. Assim, com o tempo, Putin passará”.

O russo compara a política russa com um vaper. “Se pegar num e fechar todas as válvulas, mas continuar a enviar vapor para dentro, sem o deixar sair, ele explodirá mais cedo ou mais tarde, a partir do interior”.

“Dentro da elite russa”, prossegue, “todas as posições chave de gestão, no Estado, nos bancos, nas empresas imobiliárias, são todas ocupadas por amigos ou filhos dos amigos de Putin. Por isso, espero que dentro da elite russa haja pessoas que percebam que ter o mundo inteiro como inimigo não é bom“.

Dmitri espera que haja pessoas que gostassem “de viajar e ir para Nice, ou para Londres, ou para Roma e comer esparguete, ou comer lagosta, ou comer outra coisa e beber bom vinho”. Por isso, espera que, “por dentro, algo mude. Mas certamente não será nenhum protesto, porque é sufocado”.

Europa também vai sofrer

Com “sanções a tudo”, a guerra também vai atingir a Europa, mas de outro modo. “Os preços do gás vão aumentar, por isso a produção vai ficar mais cara”.

Dmitri acredita que “quem ganha são os Estados Unidos. Se houvesse uma forte conexão económica entre a Europa, com as suas tecnologias e mercados, a Rússia, como fonte de matérias-primas, e a China… Conseguem imaginar?”

Os Estados Unidos, segundo Dmitri, estão “demasiado afastados do resto do mundo” e quem sai beneficiado com esta guerra, “quem ganha com a Rússia, com a Ucrânia e com Europa como inimigas, são os EUA, infelizmente”.

“Mas eu tenho amigos na América, tipos porreiros, e tenho realmente bons amigos. Mas pessoas são pessoas e políticos são políticos“, salienta.

Na opinião do russo, “não há nenhuma razão na Terra para matar uma única pessoa que seja”. Nos últimos dias conta que se sente “doente”. Não consegue trabalhar, e não para de pensar na guerra.

Não sou capaz de entender o quê e como é que isto está a acontecer. É apenas algo que não consigo compreender”, admite.

Qual o objetivo da guerra?

A intenção do conflito, segundo Dmitri, era “começar na Ucrânia, e depois sanções, e contra-sanções, e depois crise na Rússia, crise na Europa. É uma manipulação“.

“Seja qual for a manipulação, foi o nosso país entrar noutro país, e a começar a matar pessoas, e é isso que me deixa tão triste. De agora em diante, quarenta milhões de ucranianos mais o resto do mundo vão odiar-nos, e vão odiar-me”, lamenta.

“Antes, quando eu ia a algum país, eu era um bom convidado e as pessoas ficavam contentes por me ver. E se eu não fizesse algo de errado, seria assim. Mas, desde há dois dias, e no futuro próximo, onde quer que vá, (…) se as pessoas souberem que sou russo, vou ter de provar que não sou um um filho da mãe que votou no Putin“.

“O tempo acaba com civilizações, países, ilhas, o que quer que seja. E Putin não é imortal, não é eterno”, conclui Dmitri, com uma réstia de esperança. “Mas eu acredito que a guerra na Ucrânia é um crime, e não tem justificação possível“.

   Alice Carqueja, ZAP //

01/03/2022